Interrogatório: A Hora da Defesa e o Poder Constitucional do Silêncio

por Felipe Rissotti BalthazarO interrogatório judicial, previsto no artigo 185 do Código de Processo Penal (o conjunto de leis que rege os processos criminais no Brasil), é muito mais do que um simples momento em que o acusado fala ao juiz. Ele é, na verdade, uma peça-chave no complexo quebra-cabeça da justiça criminal, um instante decisivo onde a pessoa que responde a um processo tem a chance de se defender diretamente. É ali, diante da autoridade judicial, que o acusado pode contar sua história, sua versão dos fatos, apresentar elementos que possam inocentá-lo, confessar ou, e este é um ponto crucial, exercer seu sagrado direito de permanecer em silêncio.Ao longo do tempo, juristas e tribunais consolidaram a ideia de que o interrogatório não serve apenas para que o Estado investigue, mas fundamentalmente para que o acusado se defenda. Pense nele como um direito de resposta qualificado. Por isso, a postura do juiz durante esse ato deve ser de total neutralidade e equilíbrio. O magistrado não pode, de forma alguma, parecer um acusador, insinuando que a história contada pelo réu é mentirosa ou contrária ao que já existe no processo. Se o juiz demonstrar qualquer tipo de parcialidade, como se já tivesse formado uma opinião antes mesmo de ouvir o acusado com a devida atenção, isso pode invalidar completamente o interrogatório. Afinal, esse momento não é para o juiz “discutir” as provas, mas sim para garantir que o acusado tenha a oportunidade de ser ouvido em sua plenitude, se assim desejar.Um dos pilares mais importantes do interrogatório, e de todo o sistema de justiça criminal, é o direito ao silêncio. Essa garantia está escrita na nossa Constituição Federal (artigo 5º, inciso LXIII) e também no Código de Processo Penal (artigo 186 e ss.). Ela é o reflexo direto de um princípio jurídico fundamental conhecido pelo brocardo latino “nemo tenetur se detegere”, que, traduzindo de forma simples, significa que ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo.Isso quer dizer que o acusado pode escolher não responder a nenhuma pergunta (silêncio total) ou responder apenas àquelas que julgar que não irão prejudicá-lo (silêncio parcial). E o mais importante: o silêncio jamais, em hipótese alguma, pode ser interpretado pelo juiz como um sinal de culpa ou como uma confissão. Se o acusado decide ficar calado, isso não pode pesar contra ele na hora da sentença. Esse entendimento é tão fundamental que está reforçado em tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil faz parte, como o Pacto de San José da Costa Rica. Nenhuma desvantagem, nenhuma medida mais dura, nenhum prejuízo pode ser imposto a alguém simplesmente porque essa pessoa escolheu exercer seu direito de não falar.O direito de ser ouvido pelo juiz, conhecido como direito de audiência, é uma parte essencial da autodefesa. O juiz deve sempre garantir ao réu essa oportunidade. No entanto, o acusado pode, se assim preferir e com o consentimento de seu advogado, abrir mão de ser interrogado. A autodefesa (a defesa feita pelo próprio acusado) pode ser dispensada por ele, ao contrário da defesa técnica (aquela feita obrigatoriamente por um advogado), que é irrenunciável. Se o réu, devidamente intimado, decide não comparecer ao interrogatório, o processo segue normalmente com a defesa apresentada por seu advogado, sem que isso cause qualquer problema para a validade dos atos.Contudo, a situação se inverte se o acusado está presente no fórum, quer ser interrogado, e o juiz se recusa a ouvi-lo. Nesse caso, ocorre uma falha grave que pode anular o processo (conforme o artigo 564, inciso III, alínea ‘e’, do P), pois se impediu o exercício de um direito fundamental de defesa.É fundamental entender que o respeito ao direito ao silêncio vai além de apenas informar ao acusado que ele pode ficar calado. O juiz não pode, por exemplo, ficar insistindo com perguntas após o réu já ter dito claramente que não vai responder. Registrar no documento do interrogatório uma longa lista de perguntas que ficaram sem resposta, como se isso fosse uma “tática” do acusado para fugir da verdade, ou usar esse silêncio para influenciar negativamente a decisão final, é completamente inadequado e pode ser visto como uma forma de pressão indevida.Não basta apenas escrever na ata que o réu ficou em silêncio; o juiz não pode dar nenhum valor negativo a essa escolha. Se durante o interrogatório o acusado se sentir constrangido, pressionado, humilhado, ou se ficar claro que o juiz está interpretando o silêncio como algo ruim, isso causa um prejuízo real à defesa. Nesses casos, os tribunais superiores (como o Superior Tribunal de Justiça) já têm um entendimento firme de que o interrogatório pode ser anulado.O interrogatório judicial é, portanto, uma ferramenta poderosa de defesa. A observância cuidadosa de todas as garantias do acusado – especialmente o direito ao silêncio e a chance de se defender ativamente – é o que sustenta a ideia de um processo justo (o devido processo legal). Qualquer desrespeito a esses direitos, seja por uma postura inadequada do magistrado, pelo uso indevido do silêncio como forma de incriminação, ou pela simples negação da palavra ao acusado, mancha a imparcialidade da justiça, compromete a validade do processo e pode levar a consequências sérias, como a anulação de atos importantes.Preservar o equilíbrio, a dignidade e o respeito ao réu no momento do interrogatório não é apenas uma exigência da lei. É uma condição essencial para que a justiça penal seja legítima e para que o nosso Estado Democrático de Direito se fortaleça a cada dia.Felipe Rissotti Balthazar (@rissottifelipe) é advogado criminalista. 8577

Os artigos assinados representam a opinião do(a) autor(a) e não o pensamento do DJ, que pode deles discordar

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